Rosa Scarlett
Jaime preparava seu café da manhã ouvindo música erudita. Sabia que por mais que aquela sinfonia pudesse demorar, tinha certeza de que havia começo, meio e fim. Essa garantia lhe dava um certo conforto ao contrário de seus pensamentos que pareciam um redemoinho que dá voltas, se expande e parece voltar várias vezes para o mesmo lugar sempre com mais intensidade.
E nesses pensamentos, mal fez contato com o banho que tomou ou com a roupa que vestiu. Fez tudo no automático e estava sentado num ônibus que percorria a Av. Brasil rumo ao Centro da Cidade.
A essa altura, o aplicativo de música em estado de pura desordem tocava um ritmo country. Ele pensou em mudar a música, mas o som remetia a um filme de faroeste assim como seus pensamentos.
Jaime não encontrava resposta para o áudio do chefe reclamando do relatório, horas depois do expediente. Ele sabia que tinha feito o seu melhor e dentro do prazo, então não havia motivo para se preocupar. Sentiu leve conforto ao pensar assim, mas rapidamente uma voz em sua cabeça perguntou: "Tem certeza?"
Bastou para que o homem se rendesse a repassar todo o relatório em sua mente. O trânsito estava enjoado como sempre e até chegar ao trabalho saberia onde errou e poderia consertar assim que chegasse ao escritório. Por cuidados com sua saúde, ele havia tirado o e-mail do trabalho do celular a fim de se desconectar nas horas de descanso, por ordem médica.
Ficou tenso ao admitir que a língua portuguesa não era seu forte, logo poderia ter levado o chefe a passar vergonha. Ele sabia que o folgado do chefe pegava seus relatórios e repassava com a própria assinatura. Mas se tranquilizou quando lembrou que seu corretor estava ativo e que havia feito uma leitura atenta para tudo que estava destacado em vermelho. Todavia, sua mente veio questionar: "Tem certeza?"
Jaime estava chateado e pensou na carta de demissão que escreveu como forma de desabafo. Mesmo andando num ônibus com ar condicionado, uma gota de suor brotou em sua testa. Foi salvo pela lembrança de que havia escrito a carta num papel. Então jamais poderia ter mandado a carta por e-mail, mesmo que seu inconsciente quisesse que ele cometesse tal engano ou acerto. Secou a gota de suor da testa e sorriu ao se dar conta que tocava uma música baiana. Que raios de reprodução automática seria essa, que algoritmo maluco... pronto, pensou em números e veio a cabeça com a indagação de costume: "Tem certeza?"
O funcionário não precisou pensar muito para fazer as conexões entre algoritmos e cálculos do relatório, certamente seria isso que sua mente ou coração queriam lhe alertar. E o órgão dentro da caixa torácica quase saltou e rolou pelo corredor do ônibus. Mas Jaime era ótimos com números e tratou de fazer os cálculos mentalmente com uma urgência de quem tenta impedir o disparo de uma bomba. Não se sentiu confiante, fez e refez de novo, pegou o celular e usou a calculadora passando por cima de seu orgulho. As contas estavam certas .
Jaime se largou na cadeira como se fosse escorregar, encostou a cabeça no banco e decidiu que não pensaria mas no assunto. Tinha certeza que tudo estava certo e não era justo passar por tanta tensão antes mesmo do horário do trabalho começar.
Assim se convenceu de que o relatório estava correto e que o chefe era uma espécie de idiota que não deve ter compreendido algum termo técnico. Mais uma vez ele teria que explicar coisas do seu ofício. Tudo seria mais fácil se Jaime fosse promovido e com isso pudesse participar das reuniões com o alto escalão, disso ele tinha certeza.
Mas a certeza era algo que insistia em brincar com o sossego daquele homem. Por coincidência ou não, recebeu novo áudio do chefe. Não teve coragem de ouvir. Novamente lembrou da carta de demissão, sabia que a carta estava em sua mochila e foi conferir. Olhou todos os papéis, abriu fechos, investigou cada repartição e nada. A carta certamente teria ido parar nas mãos erradas e agora ele estava sem aquele infeliz serviço que pagava suas contas e seus remédios. No aplicativo de músicas, o batuque era cada vez mais intenso, assim estaria seu coração se não tivesse sido levado pelo rio de suor que jorrava de várias partes do corpo. Jaime respirou fundo e tentando poupar a saúde, deu uma ordem para sua cabeça parar, pois havia levado a carta para casa para não haver riscos. Mas ela veio novamente a dizer: "Tem certeza?"
-Que se foda!
O homem gritou bem alto, assustando a senhora sentada ao lado. Ele logo se desculpou, explicando que estava falando com o cretino do chefe, a senhora e os demais passageiros riam e devolveram olhares de compreensão. Jaime riu gostosamente e o aplicativo tocou um ritmo cubano, ele lembrou de lindas praias, as quais nunca pode conhecer, sabia que não teria condições de viajar, mas poderia ir à praia, afinal morava no Rio de Janeiro. Faria tal passeio no próximo final de semana ao invés de ficar fazendo coisas do trabalho escondido tanto do médico quanto da chefia. Ele queria mostrar que estava se superando, mas na verdade, trabalhava cada vez mais e produzia cada vez menos. Pensou que a demissão foi a melhor coisa que aconteceu na sua vida.
Finalmente chegou ao ponto onde saltava no Centro da Cidade, mas como estava num ônibus circular, pagou outra passagem com a felicidade de quem dormiria por todo o dia. Estava tocando um rock e sentindo toda a radicalidade da música, Jaime se encorajou, mandaria um mensagem para o ex-chefe dizendo tudo o que estava entalado na sua garganta e carcomia sua vida.
Resolveu ouvir o áudio, assim ficaria ainda mais irado para responder com muitos xingamentos. Estranhamente, o aplicativo voltou a tocar música erudita e ele interrompeu de imediato para ouvir melhor a mensagem do chefe.
-Jaime, eu tenho uma ótima notícia, você já tá chegando? Só conto quando você chegar.
O corpo de Jaime agiu mais rápido do que sua mente, quando viu já havia saltado do ônibus e corria pelas ruas, deveria finalmente ter sido promovido, com um aumento já ficaria feliz, mas até um simples parabéns pelo relatório já lhe daria vida nova. Então, sua cabeça novamente perguntou: "Tem certeza?"
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