Rosa Araujo
Todos os anos, o Natal era um acontecimento no subúrbio onde eu nasci. Os vizinhos se juntavam e faziam uma grande festa na minha rua, com muita comida, bebida, presentes e o Papai Noel, que estava todo mundo careca de saber, era o Robério do mercadinho da esquina.
Mas o ponto alto da festa mesmo, era o tal Presépio Vivo patrocinado pelo pessoal da ONG “Futuro do Amanhã” e pela prefeitura. Aliás, não me perguntem porque o nome era esse, pois, com um nome desse, seria um amanhã que nunca chegaria, mas, cada um com sua interpretação. Voltando ao tal presépio.
Os ensaios começavam sempre na segunda quinzena de novembro e os professores de teatro faziam uma convocação entre todos os moradores da minha rua. E todos os anos, sempre eram as mesmas pessoas: Lindinalva era Nossa Senhora, Gilson era São José, o anjo Gabriel era todas as vezes o louro Patricio, os reis magos, o Claudio da oficina, Lauro do açougue e o Teodoro, o bancário.
Os outros moradores ficavam numa revolta absurda. Como era possível que esse pessoal da ONG fizesse uma convocação e sempre as mesmas pessoas eram escolhidas? Renato, um dos revoltados anuais, resolveu que este ano ele iria participar. Ou entrava no presépio esse ano ou o povo da ONG ia ver que futuro o amanhã reservaria para eles. Ah, se iam!!!
Veio a tal convocação. Adivinhem? O mesmo elenco! Renato se possuiu de raiva. Agora ele ia botar a boca no mundo. Foi até a diretoria da equipe de teatro da instituição, junto com o vira-lata caramelo adotado por todos do bairro, o Otelo, como escudeiro. Foi logo perguntando à Rogeria, diretora de teatro o porquê dessa preferência. A explicação dada foi muito simples: eles já sabiam as falas de cor e eles não precisavam perder muito tempo ensaiando. Renato retrucou, que se era uma convocação para todas as pessoas do bairro, por que a escolha era sempre a mesma? Era só não fazer mais isso. Colocava o tal elenco como fixo e pronto!
Rogeria explicou que, dentre as regras para o presépio ser representado no bairro, era obrigatória essa “convocação”, se não, a prefeitura não liberaria a segurança para o evento, nem ajudaria nas roupas e nos cenários da tal encenação.
Renato ouviu tudo bem calado. Fingiu se conformar com a absurda explicação, virou as costas com Otelo em seus calcanhares e foi para casa matutando no que iria fazer para mudar esta situação. Havia pessoas do bairro que gostariam muito de participar, de representar a história do nascimento de Jesus e nunca eram chamadas.
Decidiu então juntar um grupo e pedir à Rogeria para rever a convocação. A mulher se manteve irredutível: seria o mesmo elenco de todos os anos. Renato pensou então que ela que aguardasse os acontecimentos.
Passou-se o mês de novembro e os ensaios seguiram como sempre, com as mesmas pessoas de sempre. Renato, marinando sua raiva, arquitetou um plano junto com o restante dos insatisfeitos: faria um protesto na apresentação do Presépio Vivo na noite de Natal. Iria mostrar toda a sua revolta por nunca poder participar da representação do nascimento de Jesus. Nosso Senhor iria abençoar a sua ira santa, assim pensava ele.
Passaram-se os dias. Lá veio a noite de Natal. A rua já estava toda enfeitada, com várias mesas juntas com muita comida e bebida para a ceia coletiva do bairro, músicas natalinas saiam dos alto-falantes colocados no palanque montado na praça. Todos animadíssimos conversando, celebrando. Otelo andava por ali, catando um e outro resto de comida que caía das mesas.
Renato e seu grupo esperava a hora de colocar seu plano em ação. Consistia no seguinte: na hora em que os “atores preferidos” da ONG começassem a representação, eles, que já haviam colocado umas saídas de fumaça no palco, soltariam a fumaça e o grupo entraria com cartazes de protesto contra a “escolha” do mesmo elenco todos os anos.
Tudo pronto para o começo. Música epifânica sobe. Silêncio na plateia. Sobe a fumaça e o grupo de Renato pega os cartazes e começa a gritar: “Chega de marmelada!!!!!! Chega do mesmo elenco no Presépio Vivo do bairro!”. Estavam neste cenário de protesto, quando, Otelo corre para cima do palco, latindo, como que querendo interromper o protesto. Na correria, Otelo derrubou uma das lonas que fazia as vezes de parede da estrebaria onde estava a manjedoura do Menino Jesus.
Na passagem, Otelo foi levando outras peças do cenário: cadeiras, mastros, enfim, começou uma barafunda em cima do palco que ninguém mais se entendia. O público desandou a rir daquela confusão toda e a encenação do Presépio não pôde mais continuar.
Renato e seu grupo, que já tinham caído no chão com a passagem arrasadora do cãozinho, saíram do palco muito frustrados por não terem conseguido protestar direto. O elenco fixo da ONG não pode mostrar o seu “talento” eterno ao representar, porém, estavam, na verdade, até um tanto aliviados de, este ano, não fazerem a peça. Acabaram reconhecendo que todos os anos fazendo a mesma coisa, acabava enjoando um pouco. Acabaram até dando razão a Renato e seu grupo, e, resolveram que conversariam com Rogeria sobre uma possível substituição para o elenco do presépio do ano que vem.
Todos acabaram se abraçando e reconhecendo que, na noite de Natal, não cabiam brigas e foram confraternizar todos juntos, ceando e cantando músicas de Natal..
E Otelo? Ah, esse, dormia pacificamente na manjedoura reservada para o bebê que iria representar o Menino Jesus no Presépio Vivo da ONG Futuro do Amanhã. Dormia o sono tranquilo de quem havia sido enviado para restaurar a paz entre todos na noite de Natal.
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