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Foto do escritorRosa Araujo

Letra de Samba


Rosa Araujo


“Hoje eu te ofereço/Sem a menor ilusão/Velhas folhas descoradas/E outras mortas no chão.”

Arvoredo – Paulinho da Viola


Camilo tinha uma rotina regrada. Acordava todos os dias às cinco da manhã. Fazia um café ralo que tomava com uns pães meio duros que comprava na padaria da esquina da sua rua. Esperava o ônibus no ponto lotado e todas as vezes que a condução chegava, era uma correria para pegar um lugar não ir em pé até o centro da cidade.


Quando conseguia ir sentado, colocava o fone de ouvido e escutava sambas. Amava apreciar às letras dos maiores compositores deste estilo musical, pois escrevia, há muito tempo letras de samba. Guardava no peito a vontade de, um dia, ser reconhecido como um grande compositor e configurar ao lado de grandes nomes como Paulinho da Viola, seu maior ídolo.


Saltava habitualmente no mesmo ponto no centro da cidade e andava rápido até o trabalho. Fazia segurança em um grande banco em uma avenida muto movimentada da capital. Intimamente, vivia em sobressalto, pois, com a violência crescente na cidade, achava que algum dia poderia acontecer alguma coisa com ele.


Espantava esse medo cantando intimamente os sambas que ouvia e criava novas letras na cabeça para anotar tudo no seu caderninho de capa azul que morava no seu bolso.


Era um preto alto, de compleição física forte, como exigia o seu trabalho, mas, tinha uma característica marcante que era a doçura com que falava com as pessoas. Sempre sorridente, parecia que nada abalava a paz interior de Camilo. Mesmo a preocupação com a insegurança no trabalho parecia ser menor do que o equilíbrio que possuía.


Às terças e quintas, quando saía do banco, ao invés de ir para casa, ia a uma agremiação de samba que ficava perto de seu trabalho. Andava rápido pelas ruas da cidade até chegar na Casa do Samba, como era chamado o lugar. Nestes dias, havia apresentação de cantores e compositores amadores e ele não perdia um evento. Levava sempre seu caderninho, na esperança de um dia criar coragem e apresentar suas letras a alguém que se interessasse em musicá-las. Camilo já teve violão, cavaquinho e já havia participado da bateria de uma escola de samba com seu tamborim. Mas, depois da morte da mãe, única família que teve, se desinteressou de tudo. Precisou vender muitas coisas, entre elas seus instrumentos, pois, a pensão da mãe ajudava a complementar a renda e sem esse dinheiro, a situação financeira ficou um tanto ruim. Sua mãe repetia sempre: “Meu filho, é tudo muito bonito, mas, não dá pra viver de samba.”, com as palavras da velha mãe na cabeça, arranjou o emprego de segurança e represou por um tempo o desejo de ser compositor.


Mas, vocação e paixão e difícil de segurar durante muito tempo. Camilo conheceu a Casa do Samba e virou frequentador assíduo. Sempre ocupava a mesma mesa, observava a todos que se apresentava com atenção e conversava muito com um dos donos da casa, o Gerval, que ficava um tanto intrigado com a religiosidade que o amigo vinha ao local.


Um dia, percebeu que Camilo fazia anotações constantes em um pequeno caderno de capa azul, mas, ficou calado. Sabia da introversão do amigo e não quis ser invasivo, mas, tinha certeza que ali, tinha grandes letras de samba. Sabia um pouco da paixão de Camilo, mas, como o homem nunca havia comentado nada sobre se apresentar, ou mostrar suas letras, ficava sempre na espera que um dia o amigo se animasse a se dar a conhecer.


Após um dia de apresentações do clube, uma moça que trabalhava no local, viu o caderninho azul de Camilo no chão. Não sabia de quem era, e, entregou a Gerval, que imediatamente reconheceu como sendo do amigo. Curioso para saber o que tanto Camilo escrevia, abriu o caderno. E qual não foi a surpresa de Gerval ao ler as mais belas composições de letra se samba? Eram verdadeiros poemas!!!! Aquelas obras de arte deveriam ser conhecidas e iria propor a Camilo no próximo dia de funcionamento do clube para apresentar pelo menos duas delas! Que ele declamasse mesmo e depois, com calma colocariam a música. Tinha certeza que o amigo ia gostar da sua proposta. Guardou o caderno em sua gaveta e decidiu ligar para Camilo para tranquilizá-lo, pois, já deveria ter dado falta de seu caderno.


Camilo, depois das apresentações da Casa do Samba, se apressou para voltar para casa. Ao levantar de supetão da mesa, não viu que seu caderninho caíra de seu bolso. Andou rápido até o ponto de ônibus, pegou a condução. De repente, colocou a mão no bolso e reparou, assustado, que o caderninho não estava lá. Ficou desesperado. Algumas letras, ele até lembrava de cor, mas, outras, ele não conseguia se recordar muito. Estava nessa agonia quando Gerval ligou e avisou que o caderninho azul estava com ele. O segurança, tranquilizado, chegou à casa e sonhou com um futuro de grande sambista que ele sempre almejou. Sentia que a perda do caderno lhe traria grandes novidades.


Na manhã seguinte, resolveu sair mais cedo de casa para o trabalho, pois se sentia meio sem alma com o caderno em outro lugar que não fosse seu bolso. Pegou um ônibus de horário mais cedo que o de costume e, sinceramente, nem reclamou de ir em pé até o Centro. Estava com um pressentimento tão bom, uma energia tão boa, que foi tranquilo até o fim do trajeto.


Chegou ao banco meia hora adiantado. A rua estava vazia. Camilo caminhava distraído, cantarolando um dos seus sambas, olhando para o céu ainda estrelado, quando viu na entrada dos fundos do banco uma movimentação esquisita de dois homens correndo com mochilas. Ele foi correndo em direção aos homens e gritou: “Ei!! Ei! O que vocês estão fazendo? Larguem as mochilas! Vou chamar a polícia!!!”. Os dois continuaram correndo. Camilo conseguiu puxar um pela mochila, jogá-lo no chão e desacordá-lo com um soco.


De repente, o estampido. O quente no peito. O sangue se espalhando pelas mãos de Camilo. Ele escutou, bem claramente, a voz de Paulinho da Viola cantando: “Surges na minha vida/Terna e sincera brisa/Que chegou tarde demais/Achas um pobre arvoredo/Desfolhado de sofrer/E podes crer/ Que amar não posso mais/Só porque/Já não tenho folhas verdes/ Que possa te oferecer”.

O sambista Camilo tombou no chão, morto por um tiro no peito sob os primeiros raios de sol, em mais uma manhã da capital.



ROSA ARAUJO é uma apaixonada por literatura, astrologia, tarô, animais, língua francesa e gente. Estudou, graduou-se em letras e fez mestrado em literatura brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro há 17 anos. Atualmente tem um blog de astrologia. É casada, tem uma filha e mora em Seropédica. RJ.

Endereço do blog: www.ojuarairamesoterica.blogspot.com

Pagina no instagram: @esotericaluz2022

Facebook: Rosa Zanuzzo

Perfil Pessoal instagram: rosazanuzzo2022


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