Rosa Araujo
Mãe Irene nunca teve filhos. Filhos, só os de santo, gerados no seu barracão, ventre
comum cheio de amor e fé. Não era uma mulher triste por não ter gestado filhos. Aprendeu
que os orixás não lhe deram a graça de tê-los para que pudesse acolher em seu coração todos
os que passassem por sua casa.
Estava muito atarefada preparando um almoço de comemoração pela chegada de
mais um filho na casa. Era sempre festa quando chegava mais um, pois era recebido com
muito carinho, alegria e comida!
Faltava um ingrediente para o almoço e, sinceramente, agora, ela não poderia ir à rua.
Chamou uma das suas meninas para ir ao mercadinho do bairro comprar o dendê que faltava
para o prato, porém nenhuma atendeu ao seu chamado. “Meu Deus, será que estão tão
atarefadas assim?! Bom, paciência, vou eu mesma”, pensou a senhora.
Saiu pelo portão com sua bolsa de compras e os chinelos de couro que gostava de usar
em casa. A pressa era tanta que nem se dera ao trabalho de trocá-los. Andava rápida pela rua
de terra batida, na ânsia de voltar logo para continuar os preparativos, quando sentiu uma das
tiras do seu chinelo arrebentar “Ah, meu pai Oxalá, era só o que me faltava agora!” . Estava
com o chinelo na mão, pensando se ia descalça ao mercado ou voltava para casa, quando
ouviu uma espécie de “miado” vindo do matagal que ficava ali perto. “Será que é um gato
abandonado?”, pensou. Sua casa, além de filhos, tinha toda sorte de gatos e cachorros. As
pessoas deixavam caixas com filhotes abandonados no portão do seu terreiro, porque sabiam
que lá eles teriam lar, comida e afeto.
Mãe Irene, instigada pelo barulhinho que julgava ser um miado, entrou no matagal.
Seguiu uma trilha por dentro do mato até chegar a uma clareira. No meio dela, tinha uma caixa
de papelão pequena. A senhora espiou para dentro da caixa e qual não foi sua surpresa
quando viu um bebezinho! Pequenininho, ainda sujo de sangue, com o pedaço do cordão
umbilical pendurado. Olhou em volta, apertando os olhos para ver se enxergava algum vestígio
da mãe da criança. Nada.
Tomou o bebê nos braços e descobriu que era uma menina. Aconchegou a pequena
em seus braços. Ao se sentir acalentada, a criança parou de chorar e abriu os olhinhos para ver
quem a havia resgatado. A senhora olhou aqueles olhinhos de volta e, a partir daquele
momento, amou-a com todo o seu coração. Seria sua filha amada a partir de então. Agradeceu
a Oxum por ter-lhe trazido esse presente tão querido. Era oito de dezembro e uma chuvinha
fina caia na clareira onde Helena, seria esse o nome dela, foi encontrada.
Quando chegou ao barracão com a menina, foi uma surpresa e uma alegria enorme! O
almoço de acolhimento ao novo filho da casa virou também o de recepção a Helena que
tornou-se o centro das atenções. Todos queriam pegar a bebezinha e acalentá-la. Todos, a
partir daquele dia, seriam seus irmãos e cuidariam dela.
Helena, consagrada a Oxum, foi criada e amada por todos sem exceção. Crescia bonita,
gentil com todos e sempre dedicada aos afazeres do terreiro. Sua mãe queria que ela se
preparasse muito bem para receber o cargo de Senhora de todos ali daquela comunidade.
Então, Helena se dedicava a aprender e a respeitar todos os ensinamentos que lhe eram
passados.
Um dia, quando contava dez anos de idade, um acontecimento inusitado se deu. Uma
mulher magra, um tanto desgrenhada, olhos maliciosos, encostou-se ao portão do terreiro.
Olhava a menina fixamente e Helena, incomodada, perguntou:
_ A senhora está procurando alguém?
A mulher abriu um sorriso debochado e falou:
_ Chegará um dia em que você terá que escolher entre a coroa que te pertence ou
trilhar um caminho desconhecido.
Helena, então, perguntou:
_ A senhora é uma cigana? Prevê o futuro?
A mulher respondeu:
_ Conheço você há muito tempo e sei do que você é capaz.
Um arrepio estranho percorreu o corpo da menina e ela saiu correndo, chamando pela
mãe:
_ Mãe, mãe!!!!
_ O que foi, minha filha? Você está pálida, o que aconteceu?
_ Tem uma mulher estranha no portão, dizendo que me conhece! Eu nunca vi essa
mulher antes! Ela falou umas coisas que me deixaram com medo!
_ O que ela te disse, minha filha?
_ Que me conhece e sabe do que eu sou capaz!
Mãe Irene teve uma tontura súbita. Um mau presságio se formou no seu coração. Ela
sabia que, daquele dia em diante, algo iria mudar na vida dela e de Helena.
O tempo passou. A estranha mulher nunca mais apareceu e Helena acabou
esquecendo o estranho episódio do portão. Mãe Irene relaxou um pouco na vigilância da
menina. Fez uma cerimônia de iniciação de Helena na religião e deu um lindo colar de citrino à
pequena. Significava que era consagrada à orixá das águas doces e que a serviria fielmente dali
por diante.
Tudo caminhava bem até que, Mãe Irene começou a perceber que Helena, de repente,
começou a negligenciar suas obrigações. Sumia sem dar explicações. Debochava das crianças
menores que frequentava o terreiro, maltratava os animais e não obedecia mais às ordens de
ninguém.
A senhora começou a observar que Helena sumia sempre à tarde, na hora do descanso
dos filhos da casa. Resolveu seguir a menina para saber o que estava acontecendo.
Um dia, Helena, olhando para os lados, desceu o caminho até o portão, abriu e saiu
pelo caminho de terra batida. Mãe Irene deu um tempinho e saiu atrás, seguindo-a devagar,
mas, sem perdê-la de vista. Se perguntava onde aquela criança estava indo todas as tardes,
sorrateira como uma pequena ladra. “Será que essa menina está se encontrando com algum
menino da vizinhança escondida? Ah, mas, se for isso, vai levar uma bronca daquelas e vai ser
hoje!”
Subitamente, Helena virou e entrou no matagal, aquele mesmo matagal onde foi
encontrada quando bebê, há dez anos atrás. Seguiu pela trilha que estava um pouco mais
desgastada do que Mãe Irene se lembrava. A criança andava pelo mato como se conhecesse
bem aquele caminho. A senhora ia atrás da pequena com o coração descompassado,
pensando o que levaria aquela menina para o mesmo lugar onde havia sido deixada.
De repente, Helena parou na clareira de seu nascimento. Esperou ansiosa por alguém,
que, ao que parece, estava atrasado. Mãe Irene, abaixada atrás de uma pedra grande que
havia ali, angustiava-se em presságios. “Quem seria que viria ao encontro de Helena, meu pai
Oxalá?”. Não demorou muito, do outro lado da clareira, surgiu a mulher, magra, de olhos
maliciosos, cabelos um tanto desgrenhados, com o colar de citrino de Helena no pescoço,
refletindo as gotas da chuva mansa que resolveu cair na hora daquele estranho encontro.
- Mãe! Gritou Helena. “_Até que enfim você chegou! Hoje você conseguiu vir me ver!”
Era a mulher que falou com Helena há um tempo atrás no portão de sua casa! De repente, um
raio de reconhecimento se abateu na memória de Mãe Irene. A mulher era Dagmar, uma ex-
filha de santo do seu terreiro, sumida há muito tempo. Ela não conseguia acreditar que aquela
mulher tivesse voltado e, mais ainda, estava se encontrando com Helena e a menina
chamando-a de “mãe”! Seria possível que Dagmar tivesse largado Helena naquela caixa, num
oito de dezembro há dez anos atrás?!?!?
Ficou parada, quase sem respirar, escutando a conversa das duas.
“_ E então, você trouxe o que eu te pedi, garota?” perguntou uma impaciente Dagmar.
“Trouxe, mãe, olha!”. Helena tirou do bolso da saia um par de brincos de rubi que
pertenciam a Mãe Irene.
A senhora se assustou e quase gritou quando viu Helena entregar seus brincos à
Dagmar de forma tão passiva, quase como se estivesse satisfeita em fazer isso. Pensou em
aparecer e surpreender as duas, porém se conteve e esperou para ver o que acontecia.
A mulher pegou os brincos, abriu uma sacolinha que trazia pendurada no braço e os
guardou lá dentro junto com outras joias que Helena já havia trazido para ela em outros
encontros. Ao remexer na sacola, caiu uma guia vermelha, há muito dada por Mãe Irene.
A senhora então se lembrou do jeito atrevido de Dagmar no terreiro, querendo
desafiar sua autoridade, sempre descumprindo ordens e questionando tudo o que lhe era
mandado fazer. Ela dizia; “Essa velha não sabe de nada! Eu, sim, que entendo da vontade dos
orixás! Deveria ser eu a Mãe dessa casa, não ela!” . Tanto Dagmar aprontou, que Mãe Irene a
colocou para fora do terreiro. Sentiu muito, pois, apesar da insubordinação da filha de santo,
gostava muito dela. Como se fosse aquela filha que precisasse de mais atenção por ter esse
jeito rebelde. Nunca esqueceu da madrugada em que Dagmar saiu levando seus pertences
com a guia vermelha de Iansã no pescoço. A mesma guia caída no chão da clareira.
Dagmar recolheu a guia do chão e voltou a falar com Helena: “Mamãe queria pedir um
outro favor a você filhinha.”. “Outro, mãe? Quando você vai me levar para casa? Não quero
mais morar na casa de Mãe Irene, não, quero ir com você!”, “Calma, garota! Você vai, quando
fizer um ultimo favorzinho para mim: pegar o anel de esmeralda da velha. Quando você pegar
o anel, mamãe te leva.”, “Outra vez, mãe? Não quero mais fazer isso, não.”. Dagmar abriu um
sorriso debochado “Vai sim, porque você ama a mamãe e vai fazer o que eu quero.”
Mãe Irene, horrorizada com aquela conversa, pulou detrás da pedra, correu até uma
assustada Dagmar e arrancou o colar de citrino do pescoço da mulher. Dagmar berrou
“NÃO!!!!!! NÃO FAÇA ISSO! A MENINA É MINHA!!!”
Quando o colar foi arrancado, Helena caiu no chão desmaiada. Mãe Irene pegou a
criança do chão e colocou-a nos braços, como fez com ela há dez anos atrás: “acorda, filha,
acorda. “ Helena abriu os olhos, os mesmos olhos vivos que olharam para Mãe Irene naquele
mesmo lugar. Ficou olhando para a mãe por um tempo e perguntou: “O que aconteceu?
Porque estou aqui, no seu colo no meio do mato, na chuva?”.
Mãe Irene então contou a menina: “Há dez anos atrás, em um dia oito de dezembro,
encontrei você bem aqui, no meio desse matagal, num dia de chuva como esse. Você tinha
acabado de nascer, ainda estava com o pedaço do cordão umbilical e com sangue no corpinho.
Peguei você no colo e levei para casa, para ser minha filhinha. Sabe quem deixou você lá? Essa
mulher aí, que te enfeitiçou com o seu colar de citrino, consagrado a sua Mãe Oxum. Ela é sua
mãe de sangue, porque só tendo o seu sangue, ela poderia ter feito esse feitiço de dominação
que ela fez”.
Dagmar, que até então ouvia calada, começou a falar, com ódio na voz: “ a menina, a
casa, as joias, tudo que te pertence é meu também por direito, você sabia? Eu sou sua irmã
por parte de pai! O nosso pai nunca quis me criar, pois abandonou a minha mãe logo quando
eu nasci. Você me deve! Me deve, sua velha maldita!” Mãe Irene deixou a criança deitada no
chão e partiu para cima de Dagmar, que correu, fugindo da senhora. Na fuga, Dagmar
tropeçou no mato, bateu a cabeça na pedra em que Mãe Irene esteve escondia e caiu sem vida
no chão.
Helena ao ver aquilo começou a gritar: “Ela tá morta, mãe, ela tá morta!!!!” Mãe Irene
abraçou a criança que estava tremendo dos pés a cabeça e não parava de chorar. “Acabou,
minha filha. Ela não vai mais te enfeitiçar, você não vai mais fazer coisas erradas, mamãe vai
cuidar de você como sempre cuidou.” Lavou o colar de citrino de Helena na chuva, fez uma
prece de agradecimento à Oxum, colocou a joia no pescoço da criança, pegou-a pela mão e a
levou para casa.
Kommentarer