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Foto do escritorRosa Scarlett

A crença de Ayo

Rosa Scarlett



O dia ainda não havia raiado e Ayo já estava arrumando sua bolsa. O noticiário reproduzia uma reportagem da noite. A chamada dizia que as pessoas deveriam evitar as ruas, pois havia uma perigosa criminosa que estava solta de posse de antigas magias proibidas. Ayo riu debochando e falou sozinha:

— Que bobagem.

Num estacionamento de Uber Voadores, o repórter entrevistava uma mulher com uniforme cinza e perguntava se ela estava com medo.

— Sim, acho que todo mundo tá com medo. Mas a gente tem que trabalhar. E eu acredito no trabalho da polícia.

Ayo apertou os botões na máquina de alimentos e pegou um café e um pacote de biscoitos. Bebia o café, enquanto pensava: já estamos em 2237 e ainda tem gente que acredita em magia e na polícia. Se existisse poder ancestral não usaríamos uniformes cinzas.

Ayo desligou a tela, jogou seu uniforme cinza na lixeira desintegradora e colocou seu macacão amarelo. Escondeu seu lindo cabelo black num torço preto e pôs óculos escuros para não ser identificada. Após verificar que não ficaram rastros no quarto de hotel, a moça pegou o celular e chamou um transporte.

O Uber Voador chegou sem fazer alardes e encostou na janela conforme solicitado. Mas Ayo não tinha tempo, a essa altura sua foto já circulava com oferecimento de recompensa pelo resgate.

— Flávio a seu dispor. — O condutor tentou ser simpático

— Vamos para as montanhas.

— Você não tem medo de sair de casa a essa hora? Tem uma mulher perigosa por aí.

— E o que ela fez? — perguntou Ayo se fingindo inocente.

— Dizem que ela roubou um livro proibido para manipular antigas magias.

Ayo riu para disfarçar e o condutor também riu fingindo que não estava com medo.

— Esse pessoal acredita em coisas de séculos passados, gente inocente.

O motorista colocou um rap e a viagem seguia serena. A moça contemplava o raiar do sol e se sentiu fortalecida. O condutor estava contente, uma viagem para a região das montanhas custaria caro. Todavia, o voador foi sacudido, o painel mostrava uma luz vermelha indicando uma pane. Ayo pulou para o banco da frente antes que o condutor percebesse que estavam sendo perseguidos pela polícia.

— Passa pro lado! — ordenou Ayo.

O condutor sentiu algo pontudo tocando sua barriga, viu que se tratava de um chifre de búfalo, uma arma venenosa e rapidamente pulou para o lado. Na troca de lugares, os corpos de Ayo e Flávio se encontraram. Ele não sabia se pedia desculpa, estava com medo e ao mesmo tempo instigado pela postura da moça.

Ayo fez uma manobra levando o voador da polícia bater em outro veículo. Contrariando as expectativas de Flávio que acreditava que ela se deslocaria ainda mais rápido para as montanhas, Ayo pegou uma rota rumo à Empresa de Comunicação de onde haviam roubado o livro de magias.

— Moça! Você está indo na direção do escritório central. Vai bater!

Ayo jogou uma bomba no escritório. Estacionou em meio à fumaça e saiu correndo entre as pessoas que fugiam do incêndio. Ayo notou que Flávio corria ao lado dela.

— Moça, você não pagou a corrida.

Ayo respondeu com um sorriso enquanto pensava: “como é fácil fazer uma presa”.

Ainda no meio da confusão, Ayo e Flávio entraram num dos prédios. Com suas digitais, ela abria várias portas até chegar a uma sala no fundo de um grande corredor. A sala parecia um antigo santuário, com imagens que eles não conheciam.

— Essa sala é coisa de religião? — perguntou Flávio.

— Não sei, eu fazia apenas a limpeza. Um dia, tive a infelicidade de ouvir uma discussão de dois homens sobre a venda de um livro de magias que valia muito no mercado ilegal. Mas o livro havia sumido.

— E você foi vista, é claro. Covardes. — concluiu Flávio.

— Prazer, eu sou Ayo — falou a moça rindo, pois gostava de homens inteligentes.

— Por que você veio pra toca dos lobos?

— A resposta tem que estar aqui.

Ayo e Flávio revistaram a sala, mesmo sem saber como seria o livro. Encontrar o livro provaria a inocência de Ayo. Mas eles nada encontraram.

— Depois que isso tudo passar, acho que vou arrumar um voador. Eu adoraria voar. — falou Ayo, pensando num futuro melhor.

— Com que dinheiro? Aliás, como você conseguiu aquelas armas?

— Estou foragida desde que me acusaram, tive que aprender a sobreviver.

— Ayo, a gente que é pobre, de um jeito ou de outro, passa o tempo todo tentando sobreviver. — Flávio fez um semblante de quem também tinha suas lutas.

Ayo sentou numa grande mesa para descansar e pensar melhor. Os dois trocaram olhares e se beijaram cheios de tesão. Ayo deitou na mesa pronta para profanar aquele lugar com cara de templo e Flávio foi sedento para despir a moça.

— Para! — gritou Ayo.

Flávio parou assustado e seguiu o olhar de Ayo fixo no teto, havia uma caixa no alto, era uma peça de decoração, mas certamente dentro daquela caixa poderia haver algo a mais.

Ayo estava certa, sorriu e dançou ao encontrar o antigo livro. Enquanto todos estavam procurando por ela, o livro estava seguro e poderia ser vendido ilegalmente.

— Ayo, não abra esse livro. É muito perigoso — Flávio estava tenso e segurou a mão de Ayo.

— Flávio, você notou que todos os funcionários dessa empresa usam cinza? Até você que não trabalha aqui, tá usando essa blusa cinza. E fica todo mundo temendo um poder ancestral que não existe e acreditando no poder dos homens poderosos.

— Eu tenho medo de magia. E se você morrer? Ayo não abre.

— Eu vou provar pra todo mundo que magia não existe e que a Empresa de Comunicação está ajudando a manter o povo numa grande mentira. Quem tem medo é mais facilmente dominado.

Na capa do livro estava escrito Iansã e é claro que Ayo abriu cheia de alegria pelo poder de tocar em algo proibido. Todavia, contrariando as expectativas da moça, logo que ela abriu o livro, papéis e objetos leves na sala foram movimentados por um vento, embora as janelas estivessem fechadas.

Flávio tinha um pavor estampado na cara, mas Ayo se sentiu alegre com a força do vento e ousou a virar uma página. Uma grande borboleta dourada saiu do livro e jogou pó de ouro por onde passava. Ayo sorria como criança, estava feliz, se ajoelhou, curvou seu tronco, botou a cabeça no chão e prostrou todo seu corpo sentindo a força ancestral de Iansã.

Por temor ou por iniciante devoção Flávio também se ajoelhou e tocou com leveza no braço de Ayo.

— Você está bem?

— Agora eu sei, Flávio. A força ancestral existe e eu posso voar.

Flávio tentou falar, mas não conseguiu, ele acompanhou o movimento de Ayo que se levantava lentamente do chão. Quando sentiu que sua cabeça estava muito inclinada, Flávio percebeu que Ayo estava voando.

— Você está rica! — Flávio gritou de emoção.

Ayo voltou para o chão, pegou o livro e os dois saíram correndo do lugar como se estivessem escapando do incêndio que se espalhava, embora a ação dos bombeiros. Já no Voador, Flávio não conseguia se conter e ia falando que ela poderia fazer apresentações ou vender o livro por milhões depois que estudasse os poderes mágicos.

— Flávio, eu só quero minha liberdade e sei que o povo também precisa ser livre.

Quando o carro passou por cima de uma grande comunidade, Ayo tirou o torço da cabeça, soltou seu lindo cabelo black e abriu o livro. Muitas borboletas pequenas e douradas voaram. Adultos, crianças e idosos pulavam de alegria. Eles não sentiram medo diante da certeza de que a guerreira Iansã existia. Ayo olhava fixamente para as pessoas e Flávio falou:

— Parece que só você conseguiu voar.

Ayo notou que precisava aprender mais sobre o livro e pensou que deveria ajudar ainda mais seu povo. Ela olhou para Flávio e perguntou:

— Você está comigo?

— Claro!

— Então, toca para as montanhas.




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