Veio para este bairro há alguns anos e nunca tinha visto o homem da casa de muro azul. Sabia que era um homem que morava lá porque algumas vezes chegava perto do muro e via algumas correspondências caídas no chão com o nome de “José Maria Lemos” .
José Maria já deveria ser adiantado em anos, uma vez que quase ninguém neste mundo digital recebia mais correspondências. Se perguntava como podia uma pessoa morar em uma rua sem que quase ninguém o tivesse visto direito, porém quando as pessoas realmente não querem ser encontradas, elas não são. Mesmo.
Aquele encerramento do “homem misterioso da casa de muro azul” a deixava muito, mas, muito curiosa. O que haveria por detrás daquele muro que aquele homem escondia tanto? Quando saía para o trabalho, espichava a cabeça para lá, via malmente as luzes acesas pela janela, às vezes algum barulho um tanto abafado de objetos batendo dentro da casa, porém nunca havia visto o morador. Havia comentários pela rua de que o homem era depressivo, ou, que tinha algum tipo de doença incurável, que o forçava a fazer essa espécie de isolamento, porém, certeza mesmo, ninguém tinha de nada.
Havia dias, que não se via nada mesmo, havia dias que tinha as luzes o barulho abafado e mais nada. Mas, de uns tempos para cá, começou-se a ouvir ruídos mais fortes, como se tivessem fazendo uma obra dentro da casa. Mas, como, se ao que parece, ninguém havia percebido ninguém entrando na casa? Realmente, ela começou a perceber que os barulhos de batidas e serrotes estavam fortes, bem como os de algumas máquinas. Não se ouviam vozes, mas, barulhos tinham vários. Começaram os comentários no bairro de que a casa do muro azul havia entrado em obras, e como seu morador não se dava a aparecer, todos começaram a ficar curiosos e desconfiados de tanta atividade súbita.
Ela juntou alguns amigos para fazerem uma espécie de campana discreta em frente à casa. Aquilo teria que ser descoberto, pois em um bairro residencial como aquele, não poderia haver tanto mistério! E se o homem fosse criminoso? Tanta coisa que se via hoje em dia na televisão, na internet? Então combinou com os amigos que ficavam durante o dia em casa para vigiarem a casa do misterioso morador, ver se saía alguém, se entrava, quando entrava, enfim, para ver o que estava de fato acontecendo.
Aos poucos, os amigos da rua começaram a tomar conta do movimento da casa do muro azul, mas, por mais que olhassem, vigiassem em turnos, não conseguiam ver, ninguém entrar ou sair de lá! Ela pensou, então, em fazer uma coisa mais incisiva: bater no portão da casa, para ver se José Maria sairia de lá. Uma tarde, ao voltar do trabalho, encheu-se de coragem e bateu no portão com força. Uma, duas, três batidas, e, nada. Ninguém veio atendê-la, porém os barulhos de quem estava fazendo uma obra continuavam lá dentro. Ela achou aquilo um absurdo. Será possível que o dono da casa se fizera de surdo para não vir atender ao portão?
Ela, frustrada em seu anseio de descobrir a qualquer custo o que acontecia na casa do muro azul, resolveu espalhar pelo bairro que algo concretamente suspeito se passava por lá. Como poderia ser uma barulheira numa casa da rua de um bairro residencial e, mais ainda, onde morava um homem que nunca saía dela não ter aguçado a curiosidade de todos? De tanto comentar, ela conseguiu que os moradores, não só seus amigos, ficassem realmente preocupados que José Maria fosse realmente uma pessoa de caráter duvidoso e começaram a olhar mais de perto a casa.
Não podiam chamar nenhuma autoridade, uma vez que o homem, até agora, não havia feito nada que ofendesse à lei e a ordem do bairro. A obra era dentro de sua casa, os barulhos, abafados, não chegavam a incomodar de fato, só atiçava a curiosidade fervente dela, que se deixou tomar por inteiro pelo desejo de saber o que acontecia lá dentro.
Os moradores então, pensaram numa estratégia, já que o barulho dentro da casa cessava e parava durante a noite também, duas pessoas subiriam no muro de madrugada e olharam lá dentro do quintal, tentando ver se descobriam algum elemento que pudesse ser suspeito.
Assim fizeram. Na madrugada do mesmo dia, dois moradores do bairro se encarapitaram no muro, um em uma ponta e outro em outra e ficaram olhando para dentro do quintal e da casa. Qual foi a surpresa quando não conseguiram ver nada fora da ordem o quintal? Como não podiam entrar na casa, olharam as janelas e viram somente luzes acesas e algumas sombras de pessoas passando, porém, mais nada. E permaneceu assim, durante todo o tempo em que os dois lá ficaram vigiando.
Voltaram e contaram para ela que se viu frustrada. Bem, então, teriam que tomar uma providência mais incisiva: entrariam na casa na outra noite . Não dava mais para ficar assim, sem saber o que acontecia ali! Poderia ser algo gravíssimo, que tivesse que ser comunicado às autoridades! E se José Maria fosse um assassino em série? Um vendedor de órgãos trabalhando com uma equipe para retirá-los para venda? E se estivesse fazendo uma obra para aumentar o espaço para guardar os corpos ou os órgãos? A invasão seria na noite seguinte e aconteceria da seguinte forma, um grupo forçaria o portão da casa para dar passagem ao restante das pessoas, em seguida, alguém, munido de um pé de cabra, forçaria a porta da casa e a abriria e finalmente, seria revelado o grande mistério que residia naquele imóvel.
Por volta de meia-noite e quarenta e cinco, o grupo já estava na frente do muro azul aguardando somente as ordens dela para entrar. Ela então anunciou a invasão e todos saíram em direção ao portão para fazer o que haviam combinado. Qual não foi a surpresa dela e de todos ao perceberem que o portão estava sem tranca, permitindo a livre passagem do grupo. Estranharam, pois, na noite anterior estava trancado. Aliás, começaram a reparar que a casa estava em um silêncio ensurdecedor, escura, parecendo que estava vazia. Onde estaria José Maria? Onde estavam os donos das sombras que eram vistas pelas janelas cerradas? Cadê o barulho de obra?
Tiveram um mau pressentimento e um susto quando ela colocou a mão na maçaneta da porta da casa e ela se abriu sem resistência. Todos se precipitaram para dentro para ver o que havia no seu interior. A porta dava para a sala de jantar, de decoração antiga. Vários porta-retratos de um senhor moreno, cabelos outrora negros, alto, com roupas coloridas e uma máquina antiga de filmagem nas mãos. Em outras fotografias, era possível já ver um José Maria mais velho, cabelos brancos, com as mesmas roupas coloridas e várias câmeras nas fotos.
Olharam pela sala toda e se depararam com cartazes de filmes nacionais e internacionais antigos, troféus e prêmios de cinema.
Foram entrando na casa. Ela reparou que no corredor que dava acesso aos quartos, tinha uma porta de alçapão que dava acesso ao que parecia um porão. Abriu. Entrou. Lá dentro, para espanto de todos, uma sala completa de cinema em construção, telão, projetores, cadeiras na plateia, todo um ambiente para projeção de filmes. Olharam para aquilo sem acreditar, pois esperavam, principalmente ela, alguma coisa digna de páginas policiais ou de noticiários sensacionalistas.
Em uma cadeira, em frente ao telão, José Maria jazia sentado, olhos fechados, roupa colorida, corpo flácido, com um bilhete na mão que dizia: “Uma vida inteira dedicada à sétima arte, me consumiram as economias, porém, me despeço, realizado. Deixo meu legado aos moradores do bairro onde me tinham como uma figura fantástica. Aproveitem e tratem com amor o maravilhoso mundo do cinema”. Todos olhavam para o corpo em reverência. Ela, tirando o bilhete das mãos do velho ator, chorou.
ROSA ARAUJO é uma apaixonada por literatura, astrologia, tarô, animais, língua francesa e gente. Estudou, graduou-se em letras e fez mestrado em literatura brasileira na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha no Poder Judiciário de Estado do Rio de Janeiro há 17 anos. Atualmente tem um blog de astrologia É casada, tem uma filha e mora em Seropédica. RJ.
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