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Foto do escritorRosa Scarlett

Água de Barrela

Rosa Scarlett


Água de Barrela era utilizada para deixar as roupas branquinhas pelas lavadeiras do passado. Água de Barrela é o título do livro Eliana Alves Cruz onde ela conta a saga da sua família, mostrando a luta pela liberdade desde que seus antepassados foram sequestrados em solo africano.

De cara me identifiquei com o livro porque venho de uma linhagem de lavadeiras e meus antepassados também conheceram a dor da história do Brasil.

Ao contrário da Eliana, eu não tenho como obter tanta informação sobre a trajetória da minha família. O sequestro e a escravização do nosso povo, rompeu laços, mudou nomes e memórias foram perdidas. Fomos identificados como animais ou menos que eles e durante séculos tivemos que lutar por algo que deveria ser óbvio para todo o ser humano: a liberdade.

Cabe aqui destacar a frase do personagem Adônis quando leu a carta de alforria que um amigo conseguiu comprar somente com quarenta anos de idade. Essa frase me tocou e segue gritando no meu coração:

"Então é isso. A vida inteira num papel".


É terrível pensar que pessoas foram sequestradas, perderam suas famílias, seus lares, suas vidas, passaram por todo azar de maldades e quando finalmente foi possível "ser livre" ainda precisavam pagar por isso ao invés de serem indenizadas.


Navegar nas palavras da autora foi como ter a oportunidade de resgatar essa memória. Gostei dos antepassados dela, como se fossem os meus, torci e chorei por eles.


Penso que este livro deveria ser leitura obrigatória no Ensino Médio, junto com Torto Arado de Itamar Vieira Jr. e Pequeno Manual Antirracista da Djamila Ribeiro. Estes livros nos permitem entender a história do Brasil e suas repercussões hoje. Com estas leituras se pode entender que o Racismo Estrutural não é apenas de uma expressão da moda.


Água de Barrela é um livro sobre lutas e sobretudo de lutas de mulheres que cuidam das casas, das crianças, das roupas, que estão no comércio e conquistam um espaço também nas escolas.

A trajetória dos personagens e a importância da Educação para conquistar a liberdade me lembrou de processos vivenciados pelos norte-americanos negros contados por Ângela Davis.

E aqui quando falo de estudo, não falo apenas de alfabetização e de conceitos de matemática. Poder estudar tem um significado muito maior, pois romper com amarras físicas, econômicas, culturais e emocionais exige não só conhecimento, mas se nutrir com a força dos ancestrais, se inspirar em grandes exemplos e acreditar num futuro melhor. Ocupar espaços, se impor e criar uma narrativa diferente da engendrada por séculos, são construções processuais.

Assim como a personagem Celina recebeu olhares de estranhamento por ser professora (por ser negra), ainda vejo os olhares de estranhamento quando digo, sim, eu sou a assistente social.

Como descendente de mulheres que foram lavadeiras, a água está sempre na minha vida, por isso, na pandemia quando tivemos que passar a lavar tudo que vinha da rua, me senti com a dignidade das minhas mais velhas que sabiam limpar e cuidar. Esse sentimento me rendeu a poesia Ecos da Água* e uma menção honrosa num concurso de poesia.

O livro é um romance histórico e como tal percorre datas e fatos importantes do nosso país. Nada melhor para pensar no feminismo negro do que o entendimento de Damiana quando a Constituição de 1934 garantiu pela primeira vez o voto das mulheres. Enquanto as feministas comemoravam por poder finalmente participar da vida do país, Damiana "pensava que já participava demais da vida da nação, ela e as mulheres da família arregaçaram as mangas e trabalhavam desde pequenas".


Durante a leitura, houve um dia que levei meu marido de carro ao trabalho para que ele não chegasse atrasado, ele é professor e como estava muito impactada pela leitura voltei para casa olhando de forma especial e mais atenta para as muitas crianças e adolescentes negros. Eles andavam nas ruas uniformizados e pensei que maravilha, no passados eles jamais estariam andando livres pelas ruas, não estariam de uniforme e definitivamente não estariam estudando. Vencemos!


A leitura deste livro foi uma jornada de muito afeto e emoção. É muito triste quando chegamos ao final da leitura, mas que bom que este livro terminou com muitas vitórias, me senti vencendo junto com a família da autora. E pude compreender a profundidade da dedicatória que ela me fez na Bienal do Rio em 2023.




*Ecos da Água

Rosa Scarlett


No silêncio desta tarde

só a água me abençoa.

Passa tempo, passa água

se não fosse essa linhagem,

eu seria outra pessoa.

Minha bisa foi lavadeira,

lavadeira de sinhá.

No rio ou no riacho

sua sina era lavar.


Passa tempo, passa água.

Minha avó foi lavadeira,

seis filhos pra criar

era muita trabalheira.


Água passa, vai lavando

o silêncio abençoando

e água de benzer

traz saúde pro bebê.


Passa tempo, passa água

Minha avó se salvou

Dos martírios da Espanhola,

Uma gripe que acabou.


Se não fosse minha linhagem

eu seria outra pessoa.


Sem o eco dessa água,

eu não ia afastar

as maldades desse vírus,

água vem me abençoar.

(Menção Honrosa no concurso de Poesia da Semana Fluminense do Patrimônio - 2021)

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1 Comment


Uma lindeza de análise de um livro que fiquei com vontade de ler. Uma lindeza de poema que são como uma benção ao povo descendente daqueles que vieram de África. Parabéns as duas autoras.

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